Dois textos sem conexão
Um Deus que ama, mas não dança, parece mesmo uma contradição ridícula.
Um sonho embaçado
Tive um sonho embaçado. Onde vivo, “embaçado” é uma gíria para algo complicado, difícil, problemático. Meu sonho, porém, foi literalmente “embaçado”: eu não conseguia ver nada direito. São os problemas de dormir sem óculos.
Brincadeiras à parte, tenho quase 5 graus de miopia nos dois olhos. O procedimento de correção é, ao mesmo tempo, um medo e um sonho. Sempre penso nisso ao entrar no mar.
Meus olhos, por trás das lentes, parecem cada vez menores. Foi-me prometido, porém, que, uma vez atingidos os meus 24 ou 25 anos, a miopia — assim como todo o processo evolutivo do meu corpo — estacionaria. “Daqui para frente, é só para trás”, diz a OMS sobre completar 25 anos. Ainda faltam 6 meses até os 25, mas meu exame de vista já está vencido há algum tempo.1
Os óculos estão caros.
Quando criança, achava que os óculos eram acessórios muito bonitos, coisa de gente inteligente. Nos documentários — e sempre fui apaixonado por documentários — observava que muitos entrevistados utilizavam. À época, meu pai estava começando um pequeno comércio, e minha mãe tinha de pagar suas contas no centro da cidade. Para não ficar muito tempo sozinho em casa, eu a acompanhava. Na hora de pagar, ela colocava os óculos.
Lembro que, certo dia, pedi-os para me olhar no vidro quase espelhado da agência bancária: “Como fico bonito e inteligente! Gostaria de ter um!”, pensei.
A tal da lei da atração — infelizmente — funcionou dessa vez.
Um ou dois anos depois, lá estava eu, fazendo meus primeiros óculos. Tinha onze anos. Era ruim ter de usá-los na escola: não tinha muitos problemas, mas uma menina me chamava de “quatro olhos”, e eu me defendia atacando a forma como ela se vestia — era de uma dessas denominações religiosas ultraestranhas. No Ensino Médio nos reencontramos e nos tornamos bons amigos.
Eu gostava de ser nerd e parecer nerd. Nerd? É que, uma vez, fui chamado assim e, pesquisando o termo na internet, achei interessantíssimo ser associado à inteligência. Gostava ainda mais do termo CDF. Eu achava bonito ser considerado inteligente; de certo modo, isso compensava meu complexo de inferioridade por causa da baixa estatura. Napoleão acabou invadindo metade da Europa pelo mesmo motivo. Eu, por minha vez, me contentei com menos.
Não me entendam mal, mas a escola em que estudei era um ambiente propício para que surgisse em mim algum tipo de arrogância. Era uma pequena escola de bairro, cujo apelido dado pelos mais velhos era “my eggs”, pois rimava com o nome real — tamanha era a desconsideração pela instituição à época. Meus colegas de turma eram, em geral, desinteressados pelos estudos.
Um dos meus colegas de turma, R., tinha 19 anos, uma moto cinquentinha e fazia parte de uma torcida organizada. A sua principal preocupação era dar grau na moto após sair do portão da escola.
Ainda nessa época, recordo que a minha melhor amiga era uma moça com traços asiáticos e óculos. Era inteligentíssima, o que me fazia gostar muito dela. Engraçado que, anos depois, aos 15, eu proporcionei o que talvez tenha sido o pior encontro, o pior beijo, o pior papo, a pior companhia da vida dela. No início deste ano a reencontrei no ônibus com a camiseta do curso de Psicologia. Quis parabenizá-la, mas ao mesmo tempo tinha vergonha demais do que havia acontecido entre nós. Estou perdendo o foco.
Embora nerd, eu era muito bom no futebol e no futsal, o que gerou algum respeito e me livrou de bullyings mais agressivos. Meu grau não era alto, então podia tirá-los e jogar tranquilamente. Atualmente, sem os óculos, não vejo a bola, a trave, não sei quem é o adversário e sequer sei qual esporte estou jogando.
Estou tangenciando novamente. “O sonho acabou.”
Ateu de um Deus que não dança
“Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o teu amor do que o vinho.”
Cântico dos Cânticos 1,2
Na tradição hindu, a história do relacionamento amoroso entre Krishna e Radha é bastante conhecida. O mantra “Hare Krishna, Hare Radha” está entre os mais difundidos, especialmente graças à atuação da ISKCON (popularmente conhecidos como hare krishnas) a partir da década de 1960 no Ocidente.
De forma resumida, Krishna é Deus, e Radha representa a humanidade, cada um de nós. O amor entre os dois é intenso, apaixonado e pessoal: metáfora da união íntima entre a alma humana e o divino. O erotismo e a paixão são assumidos como linguagem de devoção, entrega e desejo espiritual. Radha quer ser toda de Krishna, e Krishna quer entregar-se a Radha.
No Bhagavata Purana, há um momento em que Krishna dança com Radha, em expressão de alegria e harmonia. Na tradição do Bhakti Yoga, trata-se da presença amorosa de Deus: um Deus que brinca, que se apaixona, que dança com a humanidade.
Essa narrativa hindu me recorda o Cântico dos Cânticos: dois jovens “brincando” numa dança harmônica, romântica e erótica. É assim que gosto de imaginar o Jardim da Criação: a alma humana conduzida por um Deus que dança — uma presença que, tanto no Bhagavata Purana quanto no Cântico, transmite serenidade e leveza.
Arrisco-me a pensar que a restauração trazida por Cristo foi também a de permitir que dançássemos novamente com Deus, cercados de música, flautas, cantos, em um belo jardim florido.
Talvez essa imaginação seja infantil, mas há nela uma verdade desconcertante: Cristo nos convida a sermos como crianças. Será que isso também não inclui contemplar a Deus sem as máscaras que os adultos colocaram em seu rosto? No final, as crianças enxergam seus pais sem a proteção ilusória que os adultos acreditam necessária.
De fato, é muito mais fácil projetar nossos medos, preconceitos e incompreensões e dizer que Deus é isso. Sempre será mais fácil tentar mudá-lo do que permitir que Ele nos mude.
Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra, escreveu uma de suas frases mais famosas: “Eu só poderia crer em um deus que soubesse dançar.” Tolentino Mendonça, comentando esse trecho, traz Simone Weil e propõe uma releitura do prólogo do Evangelho de João: “em vez de ‘No princípio era o Verbo’, Weil sugere ‘No princípio era a relação’. Afinal, a oração não se constrói de palavras, mas de encontro. Não são as palavras que importam mais, mas a celebração da relação.”2
Nietzsche também escreveu: “Para ter fé no seu Redentor[…] os seus discípulos teriam de parecer mais redimidos.” Eu não sou um grande dançarino, tampouco a minha noiva. Mas, não raro, nos pegamos dançando como conseguimos. O sentido da dança amorosa não está na performance, mas na sintonia entre os amantes.
Um Deus que ama, mas não dança, parece mesmo uma contradição ridícula.
Como escreve Pe. Tomás Halík em seu maravilhoso O Entardecer do Cristianismo:
“O encontro com Deus e a transformação existencial do nosso eu — a descoberta de Deus como o Eu do nosso eu — são duas realidades essencialmente interligadas.”
Nietzsche declarou que Deus estava morto. Mas talvez esse deus imóvel, burocrático, incapaz de dançar, jamais tenha nascido. O Deus vivo, porém, não apenas nasceu: Ele também brincou.
“Quando um raio do sagrado brilha em nossa vida cotidiana, ele a enriquece com beleza, alegria, liberdade e profundidade. Em resposta a Nietzsche, declaro que o Deus em que acredito já se despiu de sua pele moral, Ele não cheira a ‘moralina’ e sabe dançar. Os amigos de Deus que se tornaram meus amigos para além dos limites da morte já ‘parecem redimidos’ e me ensinam essa dança da liberdade.”
(Pe. Tomás Halík, O Entardecer do Cristianismo, Ed. Vozes, p. 276)
Deus estranhamente — e misteriosamente — nos ama.
Essa visão atravessa outras tradições: a mística judaica, a mística cristã, o sufismo islâmico.
Mas o mistério, muitas vezes, parece abstrato e impalpável. Então reduzimos a dança ao cartório, transformando Deus em tabelião: burocrático, frio e assustador. Desse deus, já sou ateu.
Mas como cantava Leonard Cohen: “Dance me to the end of love.”
Fomos feitos para uma dança sem fim — porque “o amor jamais passará” (1Cor 13).
Recomendações
Leituras:
O Entardecer do Cristianismo - Tomás Halik
Fé Além do Ressentimento - James Alison
Música:
Anna Fedorova toca Sergei Rachmaninoff, Adagio sostenuto
Celeste Ainda, Pavarotti
Uma furtiva lagrima, Pavarotti
E lucevan le stelle, Pavarotti
O Peso do Meu Coração, Castello Branco
Nick Cave canta “A Rainy Night in Soho” no funeral de Shane MacGowan
Cinema:
Retratos Fantasmas, Kleber Mendonça Filho
Aquarius, Kleber Mendonça Filho
Outros:
Sobre um Deus que brinca: Learning to Relax, Trinity Sunday Homily
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De fato, refiz o exame recentemente e minha miopia havia estacionado. Deo gratias.
Um Deus que Dança, José Tolentino Mendonça, ed. Paulinas


Maravilhosos textos como sempre, caro Ed! Abraço!
É um deleite receber mais escrita tua, meu amigo. Inspirador e relevante nos meus dias. Abraço!!